Depois de ter ficado famoso, em 1998, por ser a área onde o assassino em série Francisco de Assis Pereira, o “maníaco do parque”, estuprou e matou pelo menos seis mulheres e tentou fazer o mesmo com outras nove, o Parque Estadual das Fontes do Ipiranga – conhecido popularmente como Parque do Estado -, volta a chamar atenção. Só que agora por outro motivo.
Pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e do Instituto Butantan descobriram que, em seus 540 hectares, encravados na zona sul de São Paulo, vivem jararacas (Bothrops jararaca) gigantes, pelo menos 50% maiores que os espécimes comuns.
A pesquisa foi feita para o trabalho de mestrado do biólogo Lucas Henrique Carvalho Siqueira no Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas do campus da Unesp de São José do Rio Preto, com orientação do pesquisador do Laboratório de Ecologia e Evolução do Instituto Butantan Otavio Augusto Vuolo Marques.
Os resultados foram divulgados no Journal of Herpetology, publicado pela Sociedade para o Estudo de Anfíbios e Répteis (SSAR, na sigla em inglês), organização internacional fundada em 1958.
Eles notaram que entre as serpentes que são entregues o tempo todo na Recepção de Animais do instituto havia várias fêmeas de jararaca muito grandes, medindo por volta de 1,5 metro, quando a média da espécie é de cerca de um metro. Aos investigar a procedência delas, eles descobriram que todas haviam sido capturadas no Parque do Estado.
Isso despertou o interesse dos pesquisadores e, por isso, o tema foi investigado no trabalho de mestrado de Siqueira.
Marques diz que estudos anteriores haviam mostrado que serpentes de grande porte, em geral, são mais comuns em ilhas. “O Parque do Estado não tem ligação com outras áreas de mata”, diz.
“É como uma ilha, só que em vez de estar cercado de água, está (rodeado) pela cidade.”
Ele e seu orientando resolveram então verificar se as jararacas do local estavam ficando maiores do que outras populações e estudar algumas razões que poderiam explicar isso, como a oferta de alimentos e a presença de predadores, por exemplo.
Siqueira explica que, para entender eventuais mudanças que a população de jararacas do Parque do Estado teria sofrido por causa da influência urbana, ele precisava compará-la com outra que não tivesse sofrido este efeito.
“O Parque Estadual da Cantareira foi então escolhido, porque tem vegetação e características ambientais e climáticas semelhantes às do Parque do Estado”, diz.
“A principal diferença e foco do estudo é que este segundo é um pequeno fragmento de Mata Atlântica completamente isolado dentro da cidade de São Paulo, ao passo que o outro é 16 vezes maior, além de estar conectado com outros habitats.”
Depois da ideia inicial, os pesquisadores partiram da hipótese de que as jararacas do Parque do Estado atingiam maiores tamanhos que as de outros ambientes por causa da influência do ser humano.
“Baseamos essa hipótese em duas premissas básicas, que geralmente explicam maiores tamanhos em serpentes: mais oferta de recursos alimentares ou menor incidência de predadores”, conta Siqueira.
Para analisar o tamanho das jararacas, ele utilizou dados de serpentes já depositados na Coleção Herpetológica Alphonse Hoge, do Instituto Butantan, e de pesquisas publicadas anteriormente, além de ter ido a campo para complementar estes dados.
“Com a ajuda de colegas, íamos para cada parque quatro dias por mês, onde procurávamos ativamente as cobras”, lembra.
Além disso, foram montadas armadilhas, para aumentar a chance de encontrar jararacas. Quando isso ocorria, eles pegavam as serpentes, as mediam e pesavam e, em seguida, implantavam um chip subcutâneo para identificá-las e as soltavam no mesmo local.
O estudo foi feito apenas com cobras adultas, que se alimentam de pequenos roedores.
A aposta dos pesquisadores antes do trabalho de campo era de que as jararacas do Parque do Estado eram maiores porque dispunham de mais fontes de alimentos.
Essa ideia estava baseada em um trabalho anterior, no qual pesquisadores do Instituto Butantan constataram que cobras da mesma espécie, que viviam no arquipélago de Alcatrazes, no litoral norte de São Paulo, eram menores do que as do continente – um fenômeno que também pode ocorrer em ilhas, o nanismo.
Eles atribuíram isso à dieta de baixo valor calórico delas, baseada em sapos, lagartos e lacraias, enquanto as continentais se alimentam de roedores, obtendo mais calorias.
Por isso, para Marques, no caso do estudo em São Paulo, era natural pensar em uma grande oferta de recurso alimentar, proporcionada pelos ratos da cidade, maiores que os silvestres e do que sapos e lacraias, já que o Parque do Estado está em uma área urbana alterada.
“Fomos surpreendidos, no entanto, pois a disponibilidade de alimento não era maior do que na Cantareira”, diz. “Capturamos menos ratinhos no Parque do Estado e não confirmamos a presença de ratos urbanos durante o tempo do estudo, só dos silvestres.”
Restava então verificar a segunda a premissa, ou seja, que houvesse uma quantidade menor de predadores no parque urbano.
Como as serpentes – e os répteis em geral – nunca param de crescer durante a vida toda, quanto menos animais no ambiente ameacem sua existência, mais tempo elas conseguem viver e, com isso, atingir um grande tamanho.
Mas verificar isso era uma tarefa mais complicada, para a qual os pesquisadores lançaram mão de uma solução criativa, no entanto.
“Um encontro com serpentes na natureza é fortuito, mas presenciar um evento de predação sobre elas seria mais raro ainda”, diz Siqueira. “Para superar essa dificuldade, utilizamos réplicas de jararaca feitas com massinha de modelar – aquelas usadas por crianças para brincar – para quantificar a incidência dos predadores.”
Eles fabricaram nada menos do que 1.440 jararacas de massinha e distribuíram 720 em cada parque, 60 por mês, ao longo das 12 campanhas de pesquisa. A réplica consiste em um modelo de uma jararaca adulta, com cabeça triangular e coloração próxima à real. Elas ficavam expostas durante 48 horas.
Os predadores confundiam as réplicas com serpentes reais e as atacavam, deixando impressa a marca do ataque.
“Para saber o número absoluto de predadores de jararaca seria preciso uma câmera em cada uma das réplicas, o que não era viável”, diz Siqueira. “Mas conseguimos quantificar a frequência de ataque e dizer se o predador era ave ou mamífero.”
Os pesquisadores constataram que o número de ataques às réplicas na Cantareira foi mais do que o dobro do que no Parque do Estado.
“Na primeira, tivemos cerca de 12% das massinhas atacadas, o que é um valor bem alto quando comparado a outros estudos relacionados”, conta Siqueira.
“No segundo, um pouco mais de 5% das jararacas foram afetadas. Concluímos que o fator responsável por encontramos maior proporção de fêmeas grandes no Parque do Estado é a menor quantidade de predadores.”
De acordo com Marques, a importância do trabalho de seu orientando está na compreensão de como as populações são estruturadas em um fragmento florestal, que é sempre fundamental para a conservação.
“Esse tipo de informação é um subsídio, que pode auxiliar na determinação de áreas mínimas ou mesmo no manejo de fragmentos florestais, a fim de preservar o máximo de sua biota.”
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