Preocupação do presidente alterou peças na receita do Estado. O objetivo é salvar ele próprio, o filho e os colegas milicianos.
CartaCapital
Jair Bolsonaro é um presidente sem decoro. Diante da decisão norueguesa de cortar a verba dada ao Brasil para ajudar a cuidar da Amazônia, uma inutilidade, pois o atual governo não quer preservar nada, ele disse no Twitter: “Pega a grana e ajuda a Angela Merkel a reflorestar a Alemanha”. E botava para circular uma falsidade, um vídeo de caça às baleias na Dinamarca que apresentou como se fosse a Noruega. Agora em agosto, foi pródigo em patadas na Polícia Federal e na Receita Federal. Patadas e mão de ferro. Forçou a troca de comando na PF no Rio, dá corda a pressões para fazer o mesmo com o Fisco no estado. Estes dois últimos casos não se encaixam apenas na indecorosidade e na atitude circense do ex-capitão de desviar a atenção ante os resultados e horizontes econômicos e sociais pífios de seu governo. O buraco é mais embaixo. Em jogo, o futuro de seu filho Flávio, senador pelo PSL do Rio, e das milícias cariocas com as quais o clã Bolsonaro tem laços.

Recorde-se: em dezembro de 2018, soube-se que Flávio era investigado por promotores do Rio por depósitos estranhos feitos por um amigo do pai, o sumido ex-PM Fabrício Queiroz, antigo chefe de seu gabinete de deputado estadual. A investigação foi suspensa há um mês pelo Supremo Tribunal Federal. Em janeiro, milicianos de Rio das Pedras e Muzema, bairros próximos da Barra da Tijuca, onde Bolsonaro tem casa, haviam sido presos. Homicídio, extorsão, suborno e grilagem de terras eram alguns dos crimes imputados à quadrilha, agora ré na Justiça. Entre os alvos, dois PMs que Flávio homenageou quando era deputado. O major Ronald Alves Pereira, que foi preso, e o capitão Adriano Magalhães da Nóbrega, foragido, tidos como os cabeças. A mãe e a esposa de Adriano trabalharam no gabinete de deputado de Flávio. “A milícia nada mais é do que um conjunto de policiais, militares ou não, regidos por certa hierarquia e disciplina, buscando, sem dúvida, expurgar do seio da comunidade o que há de pior: os criminosos”, disse Flávio da tribuna no ano em que a esposa de Adriano foi contratada, 2007.
Em março deste ano, dois meses depois da prisão dos milicianos quadrilheiros na chamada Operação Intocáveis, a polícia do Rio engaiolou uma dupla acusada do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, do PSOL, e de seu motorista, Anderson Gomes. São dois ex-PMs milicianos. Ronnie Lessa, dono de um imóvel no mesmo condomínio de Jair Bolsonaro na Barra da Tijuca. E Élcio Vieira de Queiroz, expulso da polícia após ter sido preso, em 2011, na Operação Guilhotina, levada adiante pela PF contra a banda podre da polícia do Rio.
Em março passado, a polícia carioca engaiolou a dupla acusada do assassínio de Marielle e seu motorista. Milicianos
Com Ricardo Saadi à frente, a PF no Rio estava de olho nas milícias e as investigava. É o que conta um parlamentar federal eleito pelo estado e que conversa com Saadi. É este delegado que acaba de ser degolado, graças a Bolsonaro. Saadi não tinha dívida com o presidente.
Fora nomeado para o cargo no governo Temer. Foi em 21 de fevereiro de 2018, cinco dias após o emedebista decretar intervenção federal na segurança pública do Rio. Bolsonaro era contra intervir. Dizia que não adiantaria nada, se o Exército não tivesse excludente de ilicitude, ou seja, licença para matar. Teria visto risco às milícias? Em julho de 2017, época de uma avant-première da intervenção, com a autorização de Brasília para as Forças Armadas atuarem contra o crime organizado no Rio, o então ministro da Justiça, Raul Jungmann, dizia que as milícias também eram crime organizado. Foi com ele no ministério que Saadi chegou ao comando da PF no Rio.

NO PAÍS MEDIEVAL, BOLSONARO AGE COMO SENHOR DO FEUDO, NO CASO, PARA SALVAGUARDAR O FILHO FLÁVIO E O MISTERIOSO MOTORISTA QUEIROZ
Marielle e Gomes foram assassinados em 14 de março de 2018, menos de um mês depois da chegada de Saadi. A execução teria sido um aviso dos milicianos sobre o que viria pela frente, caso Brasília resolvesse mexer com eles? Saadi ajudou a pressionar a Polícia Civil na investigação dos homicídios. Em agosto de 2018, após uma reunião dele com os interventores do Rio e promotores sobre o corpo mole da Polícia Civil na busca pelos culpados, a PF entrou na apuração. Em abril deste ano, O Globo noticiou que os federais tinham ressalvas aos civis do caso. Um laudo da PF apontava erros na preservação de provas, por exemplo. Dá para confiar nos policiais civis do Rio? Em 2011, houve a Operação Guilhotina.

O CAPITÃO ADRIANO, FORAGIDO, TINHA MÃE E ESPOSA NO GABINETE DE FLÁVIO BOLSONARO
A saída de Saadi da direção da PF no Rio já era planejada. É normal que o delegado que assumiu o comando geral da corporação no governo Bolsonaro, Maurício Valeixo, deseje ter gente sua em postos-chave. Saadi também queria mudar, ir para Brasília. Tendo ocupado um cargo importante no Ministério da Justiça por longo tempo nos governos do PT (de 2010 a 2017, dirigiu a área que negocia a recuperação de dinheiro no exterior, o DRCI), devia imaginar que seria visto como petista e perseguido. Bolsonaro atropelou tudo. Passou por cima de Valeixo, de Sérgio Moro, o ministro da Justiça que nomeou o atual diretor-geral da PF, e anunciou a queda de Saadi em 15 de agosto. Mais: anunciou o substituto, um delegado a quem convidara, no fim de 2018, para ser seu ministro do Meio Ambiente, Alexandre Saraiva, chefe da PF no Amazonas desde outubro de 2017. Saraiva é do Rio, onde o clã Bolsonaro fez carreira política. Encararia as milícias, como Saadi?
Um delegado federal que estudou em colégio militar e circula pelo mundo bolsonarista diz: para o presidente, tão importante quanto a saída de Saadi era a escolha do novo chefe da PF no Rio. No dia da degola de Saadi, a PF divulgou um comunicado a informar que a vaga ficaria com o atual chefe dos federais em Pernambuco, Carlos Henrique Oliveira Sousa. Até a quinta-feira 22, dia da conclusão desta reportagem, Sousa não havia sido nomeado no papel. Bolsonaro continuava a pressionar. Pelo Twitter, escrevera dia 21 que “a escolha do Diretor-Geral dessa exemplar instituição (PF) é de competência exclusiva do Presidente”. Quer dizer: Valeixo que se cuide. Idem a ADPF, a associação de delegados, que reclama publicamente da mão de ferro de Bolsonaro. Quanto a Moro, parece figura decorativa nesse episódio.
Tuitou o ex-capitão dia 21: “a escolha do diretor-geral da PF é da competência exclusiva do presidente”
Há outra tensão entre os federais e o presidente. O ex-capitão vai sancionar a Lei de Abuso de Autoridade, aprovada recentemente pelo Congresso? Os policiais ficam proibidos do usar algemas contra pessoas que não oferecem resistência à prisão pela PF, por exemplo, Moro defende vários vetos em limitações que, no fundo, nasceram justamente da atuação dele e da força-tarefa da Operação Lava Jato. Na terça-feira 20, juízes e promotores fizeram uma manifestação na porta do Palácio do Planalto, a cobrar o veto da lei, proposta em 2017 pelo atual líder da oposição no Senado, Randolfe Rodrigues, da Rede do Amapá. Se vetar, Bolsonaro sabe que será derrotado pelo Congresso – este derrubará os vetos. Para a ADPF, o episódio mostrará se o presidente de fato tem compromisso com o combate ao crime em geral e à corrupção, em particular.
A disputa de Bolsonaro pelo controle da PF no Rio e seu anúncio da queda de Saadi coincidem com pressões sobre a Receita Federal no estado, e aí de novo surgem em cena as milícias admiradas pelo presidente e sua prole. Em 14 de agosto, um dia antes de degolar Saadi, o ex-capitão reclamou, em entrevista, da existência de uma “devassa” fiscal sobre seus parentes. Referia-se a familiares do Vale do Ribeira, região pobre do interior de São Paulo onde os Bolsonaro prosperam de forma esquisita, conforme CartaCapital noticiou em junho.
Ricardo Saadi, da PF carioca, ameaçava com suas investigações
A implicância presidencial não se limitava ao Vale do Ribeira. Dois dias depois da declaração sobre a “devassa”, o auditor-fiscal que dirige a Alfândega do Porto de Itaguaí, no estado do Rio, mandou uma mensagem a colegas fiscais, pelo WhatsApp. Com a palavra, José Alex Nóbrega de Oliveira: “Para minha surpresa, há cerca de três semanas, o superintendente Mário (Dehon, chefe da Receita no Rio) me informa que havia uma indicação política para assumir a Alfândega de Itaguaí, a qual ele não concordava. Tratava-se de um auditor lotado em Manaus que não possuía em seus 35 anos de Receita Federal nenhuma passagem pela Aduana e sem nunca ter assumido chefias. Inconformado com essa situação, o superintendente recusou-se a realizar a nomeação, pois fugia dos trâmites utilizados pela RFB (Receita Federal do Brasil) para escolha de suas lideranças. Em represália a essa atitude, o mesmo está ameaçado de exoneração”.
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